PALAVRA COM SENTIDO

PALAVRA COM SENTIDO “…José, filho de David, não temas…? (cf. Mateus 1, 20) Neste quarto e último domingo de Advento, o Evangelho (cf. Mt 1, 18-24) guia-nos rumo ao Natal através da experiência de São José, uma figura aparentemente secundária, mas em cuja atitude está encerrada toda a sabedoria cristã. Com João Baptista e Maria, ele é um dos personagens que a liturgia nos propõe para o tempo de Advento; e dos três, é o mais modesto. Alguém que não prega, não fala, mas procura cumprir a vontade de Deus; e fá-lo no estilo do Evangelho e das Bem-Aventuranças. Pensemos: «Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu» (Mt 5, 3). E José é pobre porque vive do essencial, trabalha, vive do trabalho; é a pobreza típica daqueles que estão conscientes de que em tudo dependem de Deus e n’Ele depositam toda a sua confiança. A narração evangélica de hoje apresenta uma situação humanamente constrangedora e contrastante. José e Maria são noivos; ainda não vivem juntos, mas ela está grávida de um menino por obra de Deus. Perante esta surpresa, naturalmente José sente-se perturbado, mas em vez de reagir de maneira impulsiva e punitiva – segundo a tradição, dado que a lei o protegia – procura uma solução que respeite a dignidade e a integridade da sua amada Maria. O Evangelho diz assim: «José, seu esposo, que era um homem justo e não queria difamá-la, resolveu deixá-la secretamente» (v. 19). Com efeito, José sabia bem que se tivesse denunciado a sua esposa, tê-la-ia exposto a graves consequências, até mesmo à morte. Tem plena confiança em Maria, que ele escolheu como sua esposa. Não entende, mas procura outra solução. Esta circunstância inexplicável leva-o a questionar o seu vínculo; por isso, com grande sofrimento, decide separar-se de Maria sem criar escândalo. Mas o Anjo do Senhor intervém para lhe dizer que a solução por ele imaginada não é a desejada por Deus. Aliás, o Senhor abriu-lhe um novo caminho, uma senda de união, de amor e de felicidade, dizendo-lhe: «José, filho de David, não temas receber Maria, tua esposa, pois o que Ela concebeu é obra do Espírito Santo» (v. 20). Nesta altura, José confia totalmente em Deus, obedece às palavras do Anjo e recebe Maria. Foi precisamente esta confiança inabalável em Deus que lhe permitiu aceitar uma situação humanamente difícil e, em certo sentido, incompreensível. Na fé, José compreende que o menino gerado no ventre de Maria não é seu filho, mas o Filho de Deus, e ele, José, será o seu guardião, assumindo plenamente a sua paternidade terrena. O exemplo deste homem, manso e sábio, exorta-nos a elevar o olhar e a impeli-lo mais além. Trata-se de recuperar a surpreendente lógica de Deus que, longe de pequenos ou grandes cálculos, é feita de abertura a novos horizontes, a Cristo e à sua Palavra. A Virgem Maria e o seu casto esposo José nos ajudem a pôr-nos à escuta de Jesus que vem e que pede para ser acolhido nos nossos projetos e nas nossas escolhas. (cf. Papa Francisco, na Oração do Angelus, na Praça de São Pedro, Roma, no dia 22 de Dezembro de 2019)

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

PALAVRA DO PAPA FRANCISCO


- Discurso, no encontro com a população, no Peru, em Puerto Maldonado - Instituto Jorge Basadre, na Sexta-feira, 19 de Janeiro de 2018

Queridos irmãos e irmãs!
Vejo que viestes não só das diversas regiões desta Amazónia peruana, mas também dos Andes e doutros países vizinhos. Como é linda a imagem da Igreja que não conhece fronteiras e onde todos os povos podem encontrar o seu espaço! Como precisamos destes momentos em que podemos encontrar-nos e, independentemente da proveniência, encorajar-nos a gerar uma cultura do encontro que nos renova na esperança.
Obrigado, D. David, pelas suas palavras de boas-vindas. Obrigado, Arturo e Margarita, por terdes partilhado as vossas experiências com todos nós. Eles disseram-nos: «Visita-nos nesta terra tão esquecida, ferida e marginalizada...mas não somos terra de ninguém». Obrigado por no-lo terdes dito: não somos terra de ninguém. É algo que é preciso dizer com força: vós não sois terra de ninguém. Esta terra tem nomes, tem rostos: tem-vos a vós.
A região é designada com o nome muito belo de «Madre de Dios [Mãe de Deus]». Não posso deixar de fazer menção a Maria, jovem mulher que vivia numa aldeia remota, perdida, considerada também por muitos como «terra de ninguém». Lá, recebeu Ela a saudação e o convite maior que uma pessoa pode experimentar: ser a Mãe de Deus; há alegrias que só as podem escutar os pequeninos.
Vós tendes em Maria, não só uma testemunha para quem olhar, mas uma Mãe e, onde houver uma mãe, não existe esse mal terrível de sentir que não pertencemos a ninguém, esse sentimento que nasce quando começa a desaparecer a certeza de pertencer a uma família, a um povo, a uma terra, ao nosso Deus. Queridos irmãos, a primeira coisa que gostaria de vos transmitir – e quero fazê-lo com força – é que esta não é uma terra órfã, é a terra da Mãe! E, se há uma mãe, há filhos, há família e há comunidade. E onde há mãe, família e comunidade, os problemas poderão não desaparecer, mas certamente encontra-se força para os enfrentar de maneira diferente.
É triste constatar que há alguns que querem apagar esta certeza e tornar a Madre de Dios uma terra anónima, sem filhos, uma terra infecunda. Um lugar que se deixe facilmente vender e explorar. Por isso, faz-nos bem repetir nas nossas casas, nas comunidades, no mais fundo do coração de cada um: esta não é uma terra órfã! Tem uma Mãe! Esta boa notícia é transmitida de geração em geração, graças ao esforço de muitos que partilham este dom de saber que somos filhos de Deus, e ajuda-nos a reconhecer o outro como irmão.
Já, em várias ocasiões, me referi à cultura do descarte. Uma cultura que não se contenta apenas com excluir – como estávamos habituados a pensar –, mas que cresceu silenciando, ignorando e rejeitando tudo o que não serve aos seus interesses; parece que o consumismo alienante de alguns não consegue perceber a dimensão do sofrimento sufocante de outros. A cultura do descarte é uma cultura anónima, sem laços, nem rostos. Uma cultura sem mãe, que só quer consumir. A terra é tratada dentro desta lógica. As florestas, os rios e as torrentes são aproveitados, utilizados até ao último recurso, e depois deixados como baldios e inúteis. As próprias pessoas são tratadas com esta lógica: são usadas até ao esgotamento e depois deixadas como «inúteis». Esta é a cultura do descarte: descartam-se as crianças, descartam-se os idosos. Lá, na entrada, quando vinha para aqui, estava uma avó de 97 anos: devemos descartar aquela avó? Não! Porque a avó tem a sabedoria dum povo. Um aplauso para a avó de 97 anos!
A propósito: permiti que me detenha num assunto doloroso. Habituamo-nos a usar a expressão «tráfico de pessoas». Quando cheguei a Puerto Maldonado, vi, no aeroporto, um cartaz que me impressionou positivamente: «Atenção ao tráfico de pessoas». É sinal de que se está a tomar consciência. Mas, na realidade, deveríamos falar de escravatura: escravatura laboral, escravatura sexual, escravatura com o objectivo do lucro. É triste constatar como, nesta terra que está sob a protecção da Mãe de Deus, muitas mulheres sejam tão desvalorizadas, desprezadas e sujeitas a violências sem fim. Não podemos «olhar como normal» a violência, tomá-la como uma coisa natural. Não, não se «considere normal» a violência contra as mulheres, mantendo uma cultura machista que não aceita o papel de protagonista da mulher nas nossas comunidades. Não nos é lícito virar cara para o outro lado, irmãos, e deixar que tantas mulheres, especialmente adolescentes, sejam «espezinhadas» na sua dignidade.
Várias pessoas emigraram para a Amazónia à procura de tecto, terra e trabalho. Vieram à procura dum futuro melhor para elas mesmas e para a sua família. Abandonaram a sua vida humilde, pobre, mas digna. Muitas delas, com a promessa de que certos trabalhos poriam termo a situações precárias, basearam-se no brilho promissor da extracção do ouro. Mas não esqueçamos que o ouro se pode tornar num falso deus, que pretende sacrifícios humanos.
Os falsos deuses, os ídolos da avareza, do dinheiro, do poder corrompem tudo. Corrompem a pessoa e as instituições; e destroem também a floresta. Jesus dizia que há demónios que, para serem expulsos, se requer muita oração. Este é um deles. Encorajo-vos a continuar a organizar-vos em movimentos e comunidades de todos os tipos, para procurar superar estas situações; e também a organizar-vos, a partir da fé, como comunidades eclesiais que vivem ao redor da pessoa de Jesus. A partir da oração sincera e do encontro cheio de esperança com Cristo, poderemos obter a conversão que nos faça descobrir a vida verdadeira. Jesus prometeu-nos vida verdadeira, vida autêntica, vida eterna; não vida fictícia, como as falsas promessas que encandeiam e que, prometendo vida, acabam por nos levar à morte.
Irmãs e irmãos, a salvação não é genérica, não é abstrata. O nosso Pai vê pessoas concretas, com rosto e história concretos; e todas as comunidades cristãs devem ser reflexo deste olhar de Deus, desta presença que cria laços, gera família e comunidade. É uma maneira de tornar visível o Reino dos Céus, comunidade onde cada um se sinta participante, se sinta chamado pelo seu nome e incentivado a ser artífice de vida para os outros.
Tenho esperança em vós… Ao efectuar a caminhada para aqui, vi muitas crianças e, onde há crianças, há esperança. Obrigado! Tenho esperança em vós, no coração de tantas pessoas que desejam uma vida abençoada. Viestes procurá-la aqui, onde se encontra uma das explosões de vida mais exuberantes do planeta. Amai esta terra, senti-a vossa. Odorai-a, ouvi-a, maravilhai-vos com ela. Enamorai-vos desta terra Madre de Dios, comprometei-vos a salvaguardá-la, a defendê-la. Não a useis como mero objecto que se pode descartar, mas como um verdadeiro tesouro a desfrutar, fazer crescer e transmitir aos vossos filhos.
Encomendemo-nos a Maria, Mãe de Deus e Mãe Nossa, e coloquemo-nos sob a sua protecção. E, por favor, não vos esqueçais de rezar por mim. Agora convido-vos todos a rezar à Mãe de Deus: «Ave Maria…»   (cf. Santa Sé)