- na homilia de Quarta-Feira
de Cinzas, 14 de Fevereiro, na Basílica de Santa Sabina - Roma
O
tempo de Quaresma é propício para corrigir os acordes dissonantes da nossa vida
cristã e acolher a notícia sempre nova, feliz e esperançosa da Páscoa do
Senhor. Na sua sabedoria materna, a Igreja propõe-nos prestar especial atenção
a tudo o que possa arrefecer e oxidar o nosso coração crente.
Múltiplas
são as tentações a que nos vemos expostos. Cada um de nós conhece as
dificuldades que deve enfrentar. E é triste constatar, nas vicissitudes
diárias, como se levantam vozes que, aproveitando-se da amargura e da
incerteza, nada mais sabem semear senão desconfiança. E, se o fruto da fé é a
caridade – como gostava de repetir Santa Teresa de Calcutá –, o fruto da desconfiança
é a apatia e a resignação. Desconfiança, apatia e resignação: os demónios que
cauterizam e paralisam a alma do povo crente.
A
Quaresma é tempo precioso para desmascarar estas e outras tentações e deixar
que o nosso coração volte a bater segundo as palpitações do coração de Jesus.
Toda esta liturgia está impregnada por este sentir, podendo afirmar-se que o
mesmo ecoa em três palavras que nos são oferecidas para «aquecer o coração
crente»: para, olha e regressa.
Para
um pouco!… Deixa esta agitação e este correr sem sentido que enche a alma de
amargura, sentindo que nunca se chega a parte alguma. Para!...Deixa esta
obrigação de viver de forma acelerada, que dispersa, divide e acaba por
destruir o tempo da família, o tempo da amizade, o tempo dos filhos, o tempo
dos avós, o tempo da gratuidade... o tempo de Deus.
Para
um pouco com essa necessidade de aparecer e ser visto por todos, mostrar-se
constantemente «em vitrina», que faz esquecer o valor da intimidade e do
recolhimento.
Para
um pouco com o olhar altivo, o comentário ligeiro e desdenhoso que nasce de se
ter esquecido a ternura, a compaixão e o respeito pelo encontro com os outros,
especialmente os vulneráveis, feridos e até imersos no pecado e no erro.
Para
um pouco com essa ânsia de querer controlar tudo, saber tudo, devassar tudo,
que nasce de se ter esquecido a gratidão pelo dom da vida e tanto bem recebido.
Para
um pouco com o ruído ensurdecedor que atrofia e atordoa os nossos ouvidos e nos
faz esquecer a força fecunda e criativa do silêncio.
Para
um pouco com a atitude de fomentar sentimentos estéreis e infecundos que
derivam do fechamento e da autocomiseração e levam a esquecer de sair ao
encontro dos outros para compartilhar as cargas e os sofrimentos.
Para
diante do vazio daquilo que é instantâneo, momentâneo e efémero, que nos priva
das raízes, dos laços, do valor dos percursos e de nos sentirmos sempre a
caminho.
Para,
para olhar e contemplar!
Olha
os sinais que impedem de se apagar a caridade, que mantêm viva a chama da fé e
da esperança. Rostos vivos com a ternura e a bondade de Deus, que age no meio
de nós.
Olha
o rosto das nossas famílias que continuam a apostar dia após dia, fazendo um
grande esforço para avançar na vida e, entre muitas carências e privações, não
descuram tentativa alguma para fazer da sua casa uma escola de amor.
Olha
os rostos interpeladores das nossas crianças e jovens carregados de futuro e de
esperança, carregados de amanhã e de potencialidades que exigem dedicação e
salvaguarda. Rebentos vivos do amor e da vida que sempre conseguem abrir
caminho por entre os nossos cálculos mesquinhos e egoístas.
Olha
os rostos dos nossos idosos, enrugados pelo passar do tempo: rostos portadores
da memória viva do nosso povo. Rostos da sabedoria operante de Deus.
Olha
os rostos dos nossos doentes e de quantos se ocupam deles; rostos que, na sua
vulnerabilidade e no seu serviço, nos lembram que o valor de cada pessoa não
pode jamais reduzir-se a uma questão de cálculo ou de utilidade.
Olha
os rostos arrependidos de muitos que procuram remediar os seus erros e
disparates e, a partir das suas misérias e amarguras, lutam por transformar as
situações e continuar para diante.
Olha
e contempla o rosto do Amor Crucificado, que continua hoje, a partir da cruz, a
ser portador de esperança; mão estendida para aqueles que se sentem
crucificados, que experimentam na sua vida o peso dos fracassos, dos desenganos
e das desilusões.
Olha
e contempla o rosto concreto de Cristo crucificado por amor de todos, sem
exclusão. De todos? Sim, de todos… Olhar o seu rosto é o convite cheio de
esperança deste tempo de Quaresma para vencer os demónios da desconfiança, da
apatia e da resignação. Rosto que nos convida a exclamar: o Reino de Deus é
possível!
Para,
olha e regressa. Regressa à casa de teu Pai. Regressa, sem medo, aos braços
ansiosos e estendidos de teu Pai, rico em misericórdia (cf. Ef 2, 4), que te
espera!
Regressa!
Sem medo: este é o tempo oportuno para voltar a casa, a casa do «meu Pai e
vosso Pai» (cf. Jo 20, 17). Este é o tempo para se deixar tocar o coração...
Permanecer no caminho do mal é fonte apenas de ilusão e tristeza. A verdadeira
vida é outra coisa muito diferente, e bem o sabe o nosso coração. Deus não Se
cansa nem Se cansará de estender a mão (cf. Bula Misericordiae Vultus, 19).
Regressa
sem medo para experimentar a ternura sanadora e reconciliadora de Deus! Deixa
que o Senhor cure as feridas do pecado e cumpra a profecia feita a nossos pais:
«Dar-vos-ei um coração novo e introduzirei em vós um espírito novo: arrancarei
do vosso peito o coração da pedra e vos darei um coração de carne» (Ez 36, 26).
Para,
olha e regressa! (cf. Santa Sé)