- SEMANA DA VIDA: 13-20 MAIO
Decorre, de 13 a 20 de Maio, a Semana da Vida. O tema oficial é:
“Eutanásia… O que está em jogo?”. Os responsáveis por esta iniciativa
consideraram importante retomar o documento publicado pela Conferência
Episcopal Portuguesa em 2016, ‘Eutanásia: o que está em jogo? Contributos para
um diálogo sereno e humanizador’.
O objectivo é levar os cidadãos, em geral, e os cristãos, em
particular, a aprofundar o que está em causa, procurando distinguir os conceitos;
conhecer mais claramente o que a Igreja defende e propõe. Os cristãos lêem a
vida a partir da Palavra de Jesus e, por isso, procuram iluminar as decisões
humanas com a Luz de Cristo de modo que a vida seja acolhida na sua beleza, no
seu autêntico sentido e valor e seja digna de ser vivida.
Para ajudar a uma séria reflexão, apresentamos texto do Sr. D.
Manuel Linda, Bispo do Porto.
- PALAVRA DO BISPO DO PORTO
Eutanásia:
pequeno contributo
para um diálogo cultural sério
Como é sabido, no próximo dia 29, a Assembleia da República irá
debater vários projetos de lei sobre a eutanásia. Porque o tema interessa a
todos, apresento alguns pontos de reflexão, pequeníssimo contributo para um
debate que se deseja racional, sério e humanizante.
1.Até há cerca de uma década, quando se falava na eutanásia,
colocava-se a tónica na ideia de «misericórdia», aliás presente na etimologia
da palavra: perante o sofrimento, apressar-se-ia a morte de outrem para lhe
retirar a dor. Neste caso, o decisor da ação era alguém diferente daquele que a
sofria. Atualmente, fala-se em “morte digna” e em “morte assistida” como
direito que o próprio reivindica para si. Então, agora, sujeito e objeto
identificar-se-iam.
Deixando de lado uma reflexão sobre o logro filosófico do
individualismo ou da ideia de que somos simplesmente «mónadas» sem qualquer
relação com os outros, é de acentuar duas ideias: como, em tão pouco tempo, se
decaiu do valor «misericórdia» para a mera «vontade» momentânea; e o desprezo
das condições objetivas, isto é, o saber-se se o interessado está ou não em
condições de formular um juízo fiável, fazendo repousar uma decisão
irreversível num estado de espírito que, completamente alterado pela dor física
ou pelo sofrimento moral do abandono, não pode ser efetivamente livre e
consciente. Neste caso, na prática, exigir-se-iam menos condições para pedir a
eutanásia do que, por exemplo, para formular um testamento válido.
2.Em paralelo com esta «evolução», é de acentuar a dinâmica social
da fragmentação das relações familiares, expressa no estandardizado recurso ao
internamento dos mais velhos em lares e casas de recolhimento, muitas vezes
evitáveis, no corte afetivo com os pais e avós, quando não no frequente
abandono puro e simples. Creio, pois, que, embora não numa relação exclusiva, a
mentalidade subjacente a uma tem muito a ver com a outra.
Perante isto, a sociedade tem de se interrogar se a frieza das
relações é inevitável, se sob a capa da defesa do «direito a morrer com dignidade»
não se esconde o mais cruel «descarte» daqueles em quem não se está interessado
e se se gasta a mesma energia e dedicação no cuidado dos anciãos e doentes que
se usa para defender a «morte a pedido». E, basicamente, tem de se perguntar
se, quando alguém diz que quer morrer, essa linguagem é unívoca ou não estará
antes a lançar um grito de acusação àqueles que, «criminosamente», lhe negam o
conforto e a proximidade afetiva, até porque, hoje, os modernos analgésicos
suprimem praticamente toda a dor física.
3.Este assunto entra no que se convencionou designar por “temas
fraturantes”. E o qualificativo deveria obrigar a pensar: em concreto, neste
caso, que é que se fratura? Não é simplesmente o posicionamento entre os que
são a favor e contra. É toda uma teia de relações sociais que se rompe: a
confiança na medicina, o pavor de associar doença e velhice com a possibilidade
de ser eutanasiado, a negação do velho princípio estruturante da ética médica
do “primum non nocere” (primeiro, não prejudicar), a desconfiança nas relações
familiares, os interesses escondidos por detrás de uma falsa piedade, o remorso
perante uma situação violenta e irreversível, etc.
Mas, fundamentalmente, o que mais deveria preocupar os dirigentes
sociais é o desaparecimento da ética, estrutura estabilizadora da sociedade,
com o consequente confiar ao direito toda a força da regulamentação. É que este
só se impõe pela força do direito… penal. O direito é bom, mas desde que não se
torne exclusivo: ao confiar-lhe a totalidade da normalização social, abdicamos
da força da liberdade constituinte da pessoa em detrimento da normativa
exterior e coercitiva. O que vai sempre desembocar no positivismo jurídico,
isto é, na aplicação fria da normativa, sem comiseração nem contemplações, como
demonstrou o recente caso da criança inglesa Alfie Evans. A eutanásia
representa, portanto, um terrível abaixamento do «tónus» moral da sociedade com
consequências que, a médio prazo, podem ser dramáticas.
4.O tema da eutanásia sobrepassa, portanto, o mero reducionismo ao
costumado chavão do “quem não concorda não é obrigado a fazer”: exprime uma
mentalidade que tem a ver com a própria conceção da pessoa e da sociedade.
Manifesta, de facto, uma cultura que parece «cansada», demitida de procurar a
verdade e o bem e, como tal, reduzida ao simplismo demissionário do mais fácil,
do meramente individual e volitivo, cultura em declínio que corre o risco de conduzir
à desagregação social. Por algum motivo se fala tanto do «eclipse do Ocidente»
e se observa a mutação hegemónica dos países «emergentes», os quais,
curiosamente, não colocam estas questões «burguesas».
No preciso momento em que este assunto passou para a ordem do dia,
a comunicação social está a referir um dado profundamente monstruoso: que, nos
cerca de nove milhões de portugueses que habitamos o interior destas
fronteiras, dois milhões e quatrocentos mil ou são pobres ou estão em risco de
pobreza. Mais de um quarto da população! Este sim, é o tema que deveria
preocupar os dirigentes sociais. E, para nossa desgraça, não se vislumbra um
projeto mobilizador e entusiasmante que nos leve a melhorar este estado de
coisas. Pelo contrário, parece dar-se como inevitável a submissão a uma
crescente desigualdade social em que uns poucos ficam com quase tudo e a
multidão dos jovens, dos débeis, dos velhos e de tantas famílias que têm de
sobreviver com o salário mínimo apenas se contentam com «as migalhas que caem
da sua mesa».
Espera-se, consequentemente, que as decisões a tomar sejam fruto
de uma sadia cultura ético-social e não de qualquer pretensa «modernidade» que
outra coisa não é do que o regresso ao pior dos passados. Espera-se muito da
responsabilidade ética dos nossos deputados.
Porto, 9 de Maio de 2018
+ Manuel, Bispo do Porto