- TEMPO DA QUARESMA
- MENSAGEM QUARESMAL DO
BISPO DO PORTO
na homilia de Quarta-Feira de Cinzas
1.Iniciamos, hoje, o caminho quaresmal. É um caminho feito de
oração, de escuta da Palavra de Deus, de renúncia, de jejum, de partilha
fraterna e de mais intensa vida comunitária.
A Quaresma tem profundas raízes bíblicas. Moisés passou quarenta
dias no Sinai, até receber a Aliança. Jesus jejuou quarenta dias no deserto,
antes de iniciar o seu ministério. A Igreja prepara-se, durante este mesmo
tempo, para celebrar a Páscoa.
A Palavra de Deus, que nos acompanhará na liturgia e a recente
mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2017 sustentam, em cada um de nós,
o esforço de conversão e de ousadia evangélica, que nos é pedido neste tempo de
graça e de bênção.
O Papa Francisco convida-nos a viver esta quarta-feira de cinzas e
a Quaresma, que agora começa, à luz da parábola de Lázaro, o pobre mendigo, e
do rico avarento. A partir desta parábola, o Papa Francisco convoca-nos para
acolhermos a Palavra de Deus e para cuidarmos dos nossos irmãos, como um dom.
Foi isso que o rico, de que nos fala a parábola, não fez. Ele não compreendeu,
ao deixar-se corromper pelo dinheiro, pela vaidade e pela soberba que o
cegaram, que se tornou incapaz de ver Deus, apesar de ser crente, e que não
soube respeitar Lázaro, homem pobre, que diariamente o procurava, à sua porta.
Ensina-nos esta parábola e lembra-nos o Papa Francisco que para os
idólatras do dinheiro, possuídos pela ganância, não há espaço no coração para
Deus. Para os cultivadores da vaidade, apenas centrados em si próprios, não há
lugar para mais ninguém. Para os obcecados pela soberba, dominados pela
cegueira do orgulho, não há tempo para atender, acolher, escutar e cuidar dos
frágeis e dos pobres.
2. Compreendemos, assim, à luz desta mensagem, que a Quaresma nos
convoque primeiramente para fazer experiência de deserto, de silêncio e de
oração, como Jesus fez ao longo de quarenta dias, antes do início da sua missão
pública.
O tempo de deserto, vivido antes do início da sua missão,
constituiu para Jesus um tempo necessário para acolher o desígnio que o Pai
tinha para Ele. O tempo de Quaresma, trabalhado pela pedagogia do silêncio, da
disponibilidade interior e da oração, a exemplo de Jesus, deve ser igualmente
para nós um tempo essencial, mesmo quando árido e exigente pela ascese e pela
contemplação que impõe, onde se encontre Deus como fonte única de vida, de
santidade e de paz e onde se perscrute o sonho que Deus tem para cada um de
nós.
A Quaresma constitui um tempo favorável de mais íntima e maior
proximidade com Deus. Esta intimidade próxima, exigente e feliz com Deus
permite-nos e ensina-nos a olhar as pessoas e o mundo a partir de Deus e não a
partir de nós.
3. Vivemos um tempo em que a crise de valores, na Europa e no
Mundo, fragiliza o harmonioso convívio entre os povos e banaliza a vida. E isso
magoa-nos, inquieta-nos e preocupa-nos. Mas não nos pode roubar nem a alegria,
nem a paz, nem muito menos a esperança. Sabemos que quando a vida se banaliza,
quem mais sofre são os pobres, os isolados, os indefesos, os sós, os refugiados,
os doentes e os idosos. O pior que nos pode acontecer, como sociedade, é perder
o encanto pela vida, desistir do respeito pela dignidade da pessoa humana e
abdicar da alegria de cuidar com carinho de quem sofre.
As respostas necessárias e procuradas neste tempo de mudança
civilizacional não podem ser pedidas apenas aos governantes e aos legisladores,
por muitas que sejam as suas responsabilidades na situação a que a Europa e o
Mundo chegaram. Todos nós devemos contribuir para que a sociedade caminhe em
frente, vença medos, recupere esperança e valorize a vida. O Papa Francisco
dizia esta manhã, ao celebrar esta mesma liturgia de Quarta-feira de Cinzas,
que a Quaresma nos convida a caminhar na alegria e na esperança.
Temos direito a sonhar com um mundo justo, habitado por gente de
bem e trabalhado, por gente feliz. E a Igreja, que em cada Quaresma se sente
renovada pela alegria do Evangelho e fortalecida pela celebração dos mistérios
sagrados da fé, sobretudo nos sacramentos, sente-se chamada a estar permanentemente
ao serviço da vida e do bem.
É missão da Igreja, traduzida em missão de cada um de nós,
testemunhar a sobriedade onde só existe o sonho da abundância; afirmar a
presença da amizade onde há medo e solidão; repartir o pão e o cuidado fraterno
onde há fome ou receio de pedir; ajudar a encontrar trabalho para quem dele
precisa; promover o valor da vida diante do tumulto das ideias e a confusão dos
sentimentos; educar para a justiça e para a partilha solidária; praticar as
obras de misericórdia, com alegria, como nos foi insistentemente lembrado no
Ano da Misericórdia.
4. Assim, atentos aos apelos do Papa Francisco e em íntima
comunhão com ele, continuaremos, a exemplo dos anos anteriores, um percurso de
partilha com os que mais precisam, através da nossa renúncia quaresmal
diocesana. Destinaremos o fruto da nossa generosidade e da nossa renúncia para
o Fundo Solidário Diocesano para atender, com a solicitude necessária, às situações
de necessidade de ajuda de tantas pessoas e instituições na área geográfica da
nossa diocese. Em segundo lugar, destinaremos uma parte para a diocese de
Huambo, Angola, a celebrar 75 anos da sua criação e de que é bispo diocesano D.
José Queirós, natural de Soalhães, Marco de Canaveses. Queremos repartir, com
igual generosidade, a nossa renúncia quaresmal com a diocese de Erbil, no
Iraque, para ajudar os refugiados, vindos de Mossul e da Planície de Nínive,
que ali se acolheram para fugir da guerra. O bispo desta diocese D. Bashar
Warda, que esteve recentemente no Porto para fazer ouvir o clamor do seu povo,
recebeu desde 2014, na sua diocese, mais de 120.000 refugiados.
A Quaresma é, assim, tempo propício para mergulhar nas dores do
mundo e para aí levarmos o bálsamo da nossa presença e a bênção da nossa
generosidade.
5. É esse, também, o sentido da nossa Caminhada Diocesana, uma
longa caminhada que vai das Cinzas ao Pentecostes, desde este dia 1 de Março,
em Quarta-feira de Cinzas, a 4 de Junho, no domingo do Pentecostes.
Caminharemos neste tempo, aproximando-nos mais de Jesus, o Mestre, e buscando
as fontes da alegria que a Igreja abundantemente nos oferece.
A exemplo de Maria, nas Bodas de Caná, de que fizemos texto
inspirador da nossa caminhada, prestaremos, igualmente, mais atenção aos nossos
irmãos, ouvindo em permanência, como se a nós fosse dirigido, o conselho da Mãe
de Jesus aos serventes da mesa: “Fazei tudo o que Jesus vos disser” (cf. Jo 2,
1-12).
Eles ouviram Jesus. Atentos à Sua Palavra, encheram as ânforas. O
milagre aconteceu. A alegria regressou àquela casa. E a festa continuou naquela
família.
Que assim seja connosco, também, e com esta amada Igreja do Porto
que se dispõe - com tão belo acolhimento, renovado vigor e acrescentado
entusiasmo - a viver a Quaresma a «Caminho, com Maria, Mãe de Jesus, pelas fontes
da alegria»!
Uma santa e abençoada Quaresma.
Igreja Catedral do Porto, 1 de março de 2017
António, Bispo do Porto
Da mensagem do Papa
Francisco para a Quaresma de 2017 (continuação)
“…O pecado cega-nos
A parábola põe em evidência, sem piedade, as contradições em que
vive o rico (cf. v. 19). Este personagem, ao contrário do pobre Lázaro, não tem
um nome, é qualificado apenas como «rico». A sua opulência manifesta-se nas
roupas, de um luxo exagerado, que usa. De facto, a púrpura era muito apreciada,
mais do que a prata e o ouro, e por isso se reservava para os deuses (cf. Jr
10, 9) e os reis (cf. Jz 8, 26). O linho fino era um linho especial que ajudava
a conferir à posição da pessoa um carácter quase sagrado. Assim, a riqueza
deste homem é excessiva, inclusive porque exibida habitualmente: «Fazia todos
os dias esplêndidos banquetes» (v. 19). Entrevê-se nele, dramaticamente, a
corrupção do pecado, que se realiza em três momentos sucessivos: o amor ao
dinheiro, a vaidade e a soberba (cf. Homilia na Santa Missa, 20 de setembro de
2013).
O apóstolo Paulo diz que «a raiz de todos os males é a ganância do
dinheiro» (1 Tm 6, 10). Esta é o motivo principal da corrupção e uma fonte de
invejas, contendas e suspeitas. O dinheiro pode chegar a dominar-nos até ao
ponto de se tornar um ídolo tirânico (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 55). Em
vez de instrumento ao nosso dispor para fazer o bem e exercer a solidariedade
com os outros, o dinheiro pode-nos subjugar, a nós e ao mundo inteiro, numa
lógica egoísta que não deixa espaço ao amor e dificulta a paz.
Depois, a parábola mostra-nos que a ganância do rico fá-lo
vaidoso. A sua personalidade vive de aparências, fazendo ver aos outros aquilo
que se pode permitir. Mas a aparência serve de máscara para o seu vazio interior.
A sua vida está prisioneira da exterioridade, da dimensão mais superficial e
efémera da existência (cf. ibid., 62).
O degrau mais baixo desta deterioração moral é a soberba. O homem
veste-se como se fosse um rei, simula a posição dum deus, esquecendo-se que é
um simples mortal. Para o homem corrompido pelo amor das riquezas, nada mais
existe além do próprio eu e, por isso, as pessoas que o rodeiam não caiem sob a
alçada do seu olhar. Assim, o fruto do apego ao dinheiro é uma espécie de
cegueira: o rico não vê o pobre esfomeado, chagado e prostrado na sua
humilhação.
Olhando para esta figura, compreende-se por que motivo o Evangelho
é tão claro ao condenar o amor ao dinheiro: «Ninguém pode servir a dois
senhores: ou não gostará de um deles e estimará o outro, ou se dedicará a um e
desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro» (Mt 6, 24)…”